Uma Descoberta Surpreendente!
O uso da Cannabis para fins medicinais remonta a antiguidade, existe histórico de seu uso desde 2.700 A.C.! Porém, apenas recentemente começamos a compreender os mecanismos de ação envolvidos em seus efeitos.
Durante anos se pensou que as substâncias canabinóides encontradas na planta exerciam sua ação por interação direta com a membrana celular, somente em 1988 este postulado foi ultrapassado por Devane e col., que identificaram um receptor celular que era ativado pelo THC e seus análogos, que posteriormente foi denominado receptor canabinóide (CB1).
Após a descoberta deste receptor, foi levantada a hipótese de que não serviria apenas para agonistas exógenos e sim que teria seus próprios agonistas endógenos interagindo farmacologicamente com ele, e este mesmo grupo de pesquisadores, descobriu, em 1992, o primeiro ligante endocanabinóide, que recebeu o nome de Anandamida (AEA).
O nome anandamida provém da palavra sânscrita “ananda”, que significa felicidade extrema ou bem-aventurança, que conjugada com a natureza do seu grupo químico, uma amida, formava “anandamida”.
Posteriormente, em 1993, foi identificado o segundo receptor canabinóide, CB2 e nos anos seguintes, outros endocanabinóides foram identificados tais como o 2-araquidonilglicerol (2-AG) e a palmitoiletanolamida (PEA).
Após essas descobertas, Ryberg e col, somente em 2007, descreveram o terceiro receptor canabinóide, GPR55.
Possivelmente existam outros receptores integrantes deste sistema ainda não descobertos.
O que é o Sistema Endocanabinóide (SEC) afinal?
O Sistema Endocanabinóide (SEC) é uma rede de sinalização baseada em um grupo de substâncias endocanabinóides sintetizadas sob demanda na medida do comando de seus respectivos receptores.
O SEC compreende o conjunto dos receptores canabinóides, dos endocanabinóides endógenos (ligantes agonistas correspondentes) e dos sistemas enzimáticos catalizadores da sua síntese e degradação.
O SEC é responsável por regular várias funções e processos no organismo humano e uma delas é regular as respostas à dor e inflamação.
Até o momento, três tipos de receptores foram descritos, possuem diferenças estruturais e na sua localização, porém todos estão acoplados e realizam suas atividades através da sinalização pela proteína de membrana Gi/o
- CB1: encontrado em pequeno número no sistema nervoso periférico, no tecido conjuntivo e gônadas, porém expressa-se em grande quantidade no SNC, principalmente em áreas que processam e modulam a nocicepção, como hipocampo, córtex, amigdala, gânglios basais e cerebelo.
- CB2: é amplamente expressado no sistema imunológico, em células como linfócitos B, linfócitos T CD4+, linfócitos T CD8+, células natural killer (NK), macrófagos e com grande expressão no baço também. Também é encontrado no cérebro, em pequena quantidade basal, mas sua presença no SNC está mais associada às células gliais do que aos neurônios.
GPR55: acopla-se e ativa a subunidade alfa da proteína Gi, localiza-se principalmente na supra renal, no trato gastrointestinal, nos vasos sanguíneos e, em níveis significantemente menores no SNC. Suas principais funções são a vasodilatação e migração celular
Todos os receptores interagem com agonistas canabinóides endógenos e exógenos.
A distribuição tecidual destes receptores explica os efeitos manifestados por este sistema na resposta imunológica e nas atividades do sistema nervoso, incluindo o controle da dor.
Os receptores canabinóides possuem vários agonistas endógenos, chamados endocanabinóides, dentre os quais podemos citar a anandamida (AEA), o 2-araquidonilglicerol (2-AG) e a N-palmitoiletanolamida (PEA).
Os endocanabinóides são mensageiros neurais, sintetizados sob demanda em neurônios pós-sinápticos a partir de precursores da membrana citoplasmática, através de um sistema enzimático constituído por fosfolipases que também fazem parte do SEC.
A biossíntese ocorre apenas por estímulo, de acordo com a necessidade fisiológica. Estas substâncias não são encontradas armazenados em vesículas como a maioria dos neurotransmissores, são produzidas e liberadas para exercerem ação inibitória dos neurotransmissores presentes nos terminais pré-sinápticos. Esta sinalização retrógrada ativa receptores CB e modula várias funções cerebrais, incluindo apetite, cognição, ansiedade, medo e humor e dor. Sua expressão eleva-se após dor neuropática ou inflamatória com a finalidade de inibir a nocicepção térmica e mecânica e a hipersensibilidade causada por inflamação e dor.
Uma vez sintetizados, os endocanabinóides são rapidamente degradados, também por enzimas constituintes do SEC (hidrolases e lipases inespecíficas e específicas).
O Papel do Sistema Endocanabinoide (SEC)
O SEC regula uma série de processos fisiológicos, incluindo apetite, dor, inflamação, termorregulação, pressão intraocular, controle muscular, equilíbrio de energia, qualidade do sono, resposta a estresse, motivação/recompensa, humor e memória.
Em cada parte do organismo o SEC executa tarefas diferentes. No entanto, o propósito é sempre o mesmo: a estabilização do ambiente interno independente das variações externas, ou homeostase.
Muitas pesquisas recentes têm investigado como a modulação deste sistema pode ajudar em inúmeras condições crônicas envolvendo quadros de dor, inflamação e neuroproteção com resultados muito promissores.
Os efeitos pleiotrópicos do SEC foram resumidos por Di Marzo em uma única frase:
“O sistema endocanabinóide reduz a sensação de dor, controla o movimento, a memória, o sono e o apetite”.
A Perspectiva Terapêutica no Manejo da Dor
Segundo a OMS e a Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED), cerca de 40% da população mundial apresenta queixa de quadros de dor crônica, sendo que a maior parte sofre graves consequências psicossociais.
A dor compromete a vida profissional, social e afetiva e reduz a qualidade de vida de seus portadores, debilitando-os permanente ou transitoriamente e muitas vezes impedindo de realizar tarefas importantes do dia a dia.
Atualmente, o tratamento farmacológico mais prescrito para a dor baseia-se no uso de analgésicos opioides e não opioides, anti-inflamatórios não esteroidais (AINES), e suas associações, além de anticonvulsivantes, antidepressivos, relaxantes musculares entre outros.
Entretanto, todos esses fármacos como regra geral, apresentam efeitos adversos nocivos graves, especialmente com o uso por longos períodos.
Assim, a necessidade de desenvolver novos fármacos e estratégias terapêuticas eficazes e com efeitos adversos menos pronunciados, faz com que muitas pesquisas sejam realizadas nessa área, tanto para compreender melhor a complexa fisiopatologia da dor, quanto para obter resultados satisfatórios por vias não opioidérgicas.
Dessa forma, o estudo do papel do sistema endocanabinóide no controle da dor mostra-se importante abordagem no desenvolvimento de novos tratamentos, com menor potencial de efeitos adversos ou dependência.
Na última década emergiu uma nova perspectiva terapêutica com a síntese de substâncias que modulam o sinal canabinóide por ativação ou inibição dos receptores canabinóides e das enzimas que sintetizam e degradam os endocanabinóides.
Atualmente, as atenções incidem especialmente na exploração da interferência com os processos de inativação (inibidores da enzima de degradação, FAAH), aumentando os níveis dos endocanabinóides e potencializando a sua atividade. Estes “potencializadores” do SEC são mais vantajosos pois preservam a especificidade endocanabinóide, limitando reações adversas.
Estas substâncias têm atraído a atenção, pois são promissores no tratamento da ansiedade e da dor.
“A dor enerva a alma, torna-a mais temerosa, degenera-a…É o veneno da beleza”
Hipócrates
Referências
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