Melatonina: Muito Além de uma Noite de Sono

A Glândula Pineal, O Místico Terceiro Olho

A glândula pineal também chamada de epífise neural é uma pequena estrutura do tamanho de uma ervilha, pesando em torno de 120 mg, uma “coisinha mínima de um poder grandioso”, é uma das inúmeras provas de como o ser humano foi projetado com lógica e funcionalidade. Está localizada no epitálamo, entre os dois hemisférios do córtex cerebral, mais precisamente entre os olhos, na altura da sobrancelha e regulada pelo núcleo supraquiasmático (NSQ) do hipotálamo.

Essa localização estratégica aliada ao mistério em torno de sua atividade rendeu sua fama mística, especialmente entre religiões orientais e espiritualistas, como nosso “terceiro olho” ou “janela da alma”, a conexão física com nosso espírito. Já para os mais céticos está mais para uma antena, um radar, ou como diz o médico neurocientista Dr. Sérgio Felipe de Oliveira, a pineal é um roteador de wifi, capaz de conectar pensamento e sentimento e nos conectar ao ambiente externo.

Do ponto de vista fisiológico, a pineal é a principal responsável pela produção de melatonina, embora exista produção extra pineal, é desta glândula a produção majoritária deste maestro do nosso sistema endócrino que é hormônio melatonina.

Síntese e Secreção de Melatonina

Melatonina é um neurohormônio indolamínico lipofílico, produzido pelos mamíferos principalmente pela glândula pineal, durante a noite, regulada pelo núcleo supraquiasmático do hipotálamo e inibida pela luz.  Atualmente, vários estudos já demonstram a síntese extra pineal de melatonina, não regulada pelo ritmo circadiano e de ocorrência no trato gastrointestinal, ovários, linfócitos, macrófagos, retina e pele.

A secreção de melatonina atinge seu nível máximo entre 2 e 4h da manhã e declina gradativamente com a exposição à luz e claridade matinal. A produção é influenciada por invasões no ciclo de sono e vigília como por exemplo a claridade excessiva na hora de dormir, situações estressantes, “jet-lag”. Estudos demonstram que a luz azul emitida pelos dispositivos eletrônicos reduz a liberação de melatonina e consequentemente a duração e qualidade do sono. Da mesma forma tem sido demonstrado que trabalhadores em turnos noturnos apresentam maior incidência de alguns tumores e de outras condições patológicas, especialmente cardiovasculares e gastrointestinais.

A melatonina de produção pineal exerce atividade endócrina, porém a melatonina extra pineal exerce efeitos parácrinos e autócrinos, atuando principalmente como antioxidante local.

O principal sítio de produção é a mitocôndria, a partir de seu precursor, o triptofano, que é convertido em serotonina via hidroxilação e descarboxilação. Serotonina é então convertida em melatonina em duas etapas enzimáticas catalisadas por serotonina N-acetil transferase (SNAT) e N-acetilserotonina O- metiltransferase (ASMT).

A deficiência da enzima SNAT e a falta de triptofano são os principais fatores limitantes da via de síntese da melatonina.

                                                              Antioxidants 2020

A Farmacologia e a Atividade Pleiotrópica

Como molécula anfifílica, a melatonina produzida é capaz de atravessar a membrana celular e exercer várias atividades biológicas em diferentes partes do corpo, não apenas através da ligação em receptores farmacológicos mas também por interação direta com outras moléculas.

Melatonina apresenta elevada afinidade a receptores de membrana MT1 e MT2, ativando várias vias metabólicas, apresenta afinidade menor ao receptor MT3 e ainda é capaz de ligar-se a receptores nucleares orfãos RZR e ROR. São os receptores ROR que regulam a transcrição dos genes denominados “clock” com papel de integrar os padrões circadianos em vários processos metabólicos.

As vias de sinalização ativadas pelos receptores MT são altamente celular e tecidual-dependentes. São essas caracteristicas que determinam a variedade de efeitos pleiotrópicos caracteristicos da melatonina e que lhe conferem papel chave em processos regulatórios e protetores contra várias doenças e transtornos.

Papel Regulatório da Melatonina

Modulação do Ciclo de Sono e Vigília

O ritmo circadiano que controla sono e vigília é um dos mais importantes processos neurofisiológicos, vital para a saúde e sobrevida, seu principal modulador é a melatonina, através de sua interação em receptores MT1 e MT2 localizados no núcleo supraquiasmático do hipotálamo e na retina. A melatonina promove o estado de sono e inibe a sinalização promotora do estado de vigília.

A disrupção do ritmo circadiano, relacionada a deficiência de melatonina, e a interrupção do sono resultante tem sido relacionados a doenças metabólicas, cardiovasculares, risco aumentado de câncer, doenças neurológicas e transtornos de humor.

Influência na Fertilidade e Reprodução

A melatonina é um hormônio antiestrogênico, regulador da produção de prolactina e das gonadotrofinas FSH e LH e pode influenciar a esfera reprodutiva tanto em mulheres como em homens.

Nas mulheres, pode ser sintetizada nas células foliculares, com envolvimento na ovulação e homeostase placentária. Pela sua ação antiestrogênica, bloqueando a produção de estradiol, a melatonina apresenta efeitos positivos em transtornos ginecológicos como a síndrome de ovários policísticos (SOP), falência ovariana prematura e ooforite.

A utilização de melatonina associada ao mio-inositol melhora a qualidade do oocito e do embrião de forma sinérgica aumentando o índice de implantação, promovendo fertilidade e a possibilidade de gestação.

A melatonina também regula a fertilidade masculina modulando a função endócrina das células de Leydig e a esteroidogênese nas células de Sertoli graças a sua influência na proliferação celular e metabolismo energético.

A suplementação de melatonina isolada ou combinada com mio-inositol melhora a qualidade do sêmen, pela redução de danos oxidativos ao esperma.

Metabolismo Ósseo

Uma diminuição da produção noturna de melatonina está associada com o enfraquecimento da estrutura óssea e elevação do risco de fraturas.  Estudos clínicos sugerem que o tratamento com melatonina pode efetivamente reverter a perda de massa óssea.

Papel Protetor da Melatonina

Agente Antioxidante e Anti-inflamatório

Melatonina é abundante na mitocôndria e previne danos oxidativos causados por radicais livres gerados na produção energética mitocondrial. É um poderoso antioxidante e exerce papel de proteção tanto intracelular quanto extracelular.

Melatonina exerce atividade anti-inflamatória pela inibição do fator de transcrição nuclear NF-kB, redução de mediadores inflamatórios, IL-6, IL-8, COX-2 e NOS, e limitando a produção de outros mediadores da resposta inflamatória, quimiocinas, prostanoides, leucotrienos, moléculas de adesão e PCR.

Melatonina e Obesidade

Estresse oxidativo combinado com estado de inflamação crônica são característicos da condição de obesidade. Adiposidade excessiva é uma condição caracterizada por severa disfunção de tecido adiposo branco mediada pela expressão de TNF-alfa  IL-6 e incluindo modificações na função endócrina.

No contexto da melhora das características relacionadas a obesidade o hormônio da pineal demonstrou redução na secreção de TNF-alfa e IL6 pelos adipócitos, inibição da NF-kB e NLRP3, aumento de HDL-colesterol, redução de triglicérides, LDL-colesterol e VLDL-colesterol, e redução de gordura visceral.

Papel nas Doenças Cardiovasculares

A melatonina demonstra efeito protetor contra lesão de isquemia/perfusão em vários órgãos, incluindo o coração, cérebro, rins, intestinos e fígado.

Baixos níveis de melatonina representam fator de desenvolvimento de hipertensão, hipertrofia e fibrose do ventrículo direito (VD) e aumento do estresse oxidativo no VD e aorta.

Atividade Antitumoral

O desbalanço do sistema imune associado à redução de células NK e linfócitos T  e aumento de TNF-alfa são aspectos comumente observados no câncer. Por essa razão, a melatonina tem recebido muito a atenção, como agente terapêutico complementar a terapias antitumorais.

Efeitos na Nocicepção

Melatonina tem demonstrado atenuar respostas nociceptivas e tem sido considerada como potencial e promissor agente analgésico. Em publicações recentes demonstrou efeitos antinociceptivos em quadros de dor aguda, neuropática e inflamatória

Neuroproteção nas Doenças Neurodegenerativas

A melatonina exerce inúmeras atividades no SNC através de seus receptores MT1 e MT2. O declínio da melatonina pode contribuir fortemente para o desenvolvimento de transtornos neurodegenerativos, como Doença de Alzheimer (DA) e Parkinson (DP).

A geração de radicais livres causadas pela deposição de Beta-amiloide, a disfunção mitocondrial e resposta inflamatória estão elevadas em pacientes com AD e a melatonina pode reduzir o estresse oxidativo e atenuar a perda da memória.

A melatonina melhora a atividade locomotora na DP, reduzindo a lipoperoxidação e apoptose celular.

Melatonina melhora neurogênese e preserva a integridade da barreira hemato-encefálica por ativação de MT1 .

 Estas características fazem da melatonina um promissor agente na profilaxia e tratamento de transtornos e doenças neurodegenerativas.

Atividade Imunomodulatória e Anti-infecciosa

Melatonina exerce papel importante em vários transtornos imunológicos, como infecções, doenças autoimunes e imunossenescência. A atuação especificamente sobre MT2 expresso em células imunocompetentes, regula tanto respostas imunológicas celulares quanto humorais, bem como na imunidade inata.

Além da expressão de receptores de melatonina nas células imunológicas como linfócitos-T, células Natural Killers, eosinófilos e mastócitos, evidências revelam que o sistema imune é uma fonte extrapineal de produção de melatonina.

Devido a suas funções imunoregulatórias, aliada as propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, melatonina é efetiva no combate a infecções bacterianas e virais.

Melatonina e COVID-19

Efeitos benéficos da melatonina foram postulados contra infecções por Influenza e por SARS-CoV-2, responsável pela pandemia atual de COVID-19. Além da melatonina ser capaz de reduzir inflamação, estresse oxidativo relacionados aos fatores de risco para o agravamento e mortalidade em pacientes com COVID-19.

A combinação de melatonina com vitamina D tem sido proposta como potencial tratamento sinérgico, levando em consideração que compartilham mecanismos capazes de modular e controlar a resposta imunológica e oxidativa relacionada a infecção de COVID-19.

Suplementação de Melatonina

Considerando o fato que a melatonina é um marcador de risco para várias doenças, a sua determinação é fundamental para determinar os indivíduos deficientes e que se beneficiarão com a sua suplementação tanto de forma isolada, para transtorno de sono e ansiedade, quanto de forma complementar ao tratamento convencional para doenças infecciosas, cardiovasculares, imunológicas, neurodegenerativas e oncológicas.

Conclusão

A melatonina é eficiente para melhora da qualidade do sono e para uma variedade de efeitos em inúmeros sistemas e órgãos. É considerada segura e de baixa toxicidade, com pouca ocorrência de efeitos adversos quando administrada dentro da dosagem considerada segura para pacientes com produção endógena deficitária.

A diversidade de efeitos terapêuticos e a variedade de vias de administração, fazem da melatonina um importante recurso clínico, e somente através das possibilidades técnicas e tecnológicas disponíveis nas Farmácias com Manipulação se pode ter total aproveitamento de seu potencial farmacológico.

Referências

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