Começamos com um pouco de história……
Durante grande parte da história da humanidade, a dor foi vista como uma punição divina e uma forma de purificar a alma, nesse tempo, ainda não se cogitava que poderia se um sintoma, um sinal de que algo não estava bem e de que o funcionamento de alguma parte do corpo estava comprometido.
A própria origem da palavra deixa isso claro, o termo em inglês é “Pain”, originado do latim: “poena” que significa pena ou punição e do grego poin-e que significa pagamento, pena ou recompensa.
Imagine então, caro leitor, que quanto mais devastadora e excruciante a dor suportada com bravura e passividade, mais valorizado e nobre era aquele individuo sofredor, e caso sobrevivesse, era considerado abençoado e tocado pela Graça Divina. A dor era então, considerada um sinal divino, rodeada por misticismo e não o sinal de alerta que de fato é. Um sinal que quando negligenciado, só um milagre mesmo para salvar do martírio e manter a sanidade mental de um indivíduo com dor.
É verdade que plantas com poder sedativo e analgésico já eram conhecidas e utilizadas pelas antigas civilizações, como Egito e Roma, já na Europa da Idade Média, como essas plantas eram associadas a práticas ocultistas, usava-se o vinho mesmo para aliviar as dores….Foi Paracelso que voltou a utilizar o ópio como analgésico e foi ele também que introduziu o éter como anestésico pela primeira vez. Porém, somente em 1803 a morfina foi isolada a partir do ópio extraído da papoula e então começamos a vencer a guerra e a dor humana começou a ser de fato controlada ou quase…..
“Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente.” Willian Shakespeare
Definindo a dor
Apesar dos grandes avanços no desenvolvimento dos analgésicos e anestésicos e do conhecimento sobre os mecanismos de estímulo e inibição da dor, o real controle destes mecanismos ainda são desafiadores para a medicina e as manifestações de dor podem se mostrar devastadores para a manutenção da vida dos seres humanos, especialmente daqueles que enfrentam quadros de dor crônica.
Segundo a definição da IASP (International Association of Study of Pain), publicada em 2020 (a primeira definição era de 1979 e foi recentemente revisada):
“A dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial”
Ou seja, não se trata apenas de sintoma físico, um padrão emocional está sempre associado a dor e uma lesão real nem sempre está presente, a lesão pode não existir, o que deixa o quadro todo ainda mais complexo de entender e resolver.
Aprendemos a reconhecer a dor baseado em experiências e memórias adquiridas ao longo da vida. A dor é de fato uma experiência pessoal, que é influenciada por fatores biológicos, psicológicos e sociais. De fato, cada um sabe a sua dor…. e todo o relato de dor deve ser respeitado e levado em consideração pelo profissional de saúde, pelos familiares e círculo social.
A descrição verbal é apenas um dos vários comportamentos para expressar a dor, a incapacidade de comunicação não invalida a possibilidade de um ser humano ou um animal sentir dor. Imagine você, resgatando a história que eu contava no início, na antiguidade, imaginava-se que crianças pequenas não sentiam dor, já que não sabiam expressar verbalmente, hoje parece um absurdo certo? Mas na verdade trata-se da evolução do nosso conhecimento. Imagine que daqui a uns 100 anos, este nosso conhecimento atual também estará ultrapassado e obsoleto.
Atualmente sabemos que todo relato ou manifestação dolorosa deve ser respeitada. A “Declaração de Montreal”, documento desenvolvido durante o Primeiro Encontro Internacional de Dor em setembro de 2010, declara que o “acesso ao tratamento da dor é um direito humano fundamental.”
A dor pode ser aguda, neste caso é de curta duração, com localização e caráter bem definidos, desaparece espontaneamente ou quando sua causa é tratada, está associada a uma lesão tecidual e tem função de proteção, defesa e alerta.
Porém a dor também pode ser crônica, com duração superior a 3 meses (6 meses em algumas referências), nem sempre tem localização bem definida e nem sempre está associada a uma lesão real, pode estar separada de seu evento causador e perdeu a função protetora e de alerta fisiológico. A dor crônica pode ter repercussões negativas no âmbito físico, psicológico, emocional e social com comprometimento funcional, por exemplo na mobilidade, apresenta efeitos sobre o próprio indivíduo e também sobre a sociedade, devido a carga emocional para o círculo familiar e social e também pelos altos custos diretos e indiretos que o quadro acarreta para o indivíduo e para a sociedade.
Compreender o prejuízo que as limitações físicas acarretam ao indivíduo é um dos aspectos mais importantes para a prevenção e o manejo adequado da dor crônica.
A dor crônica também pode levar a alterações imunológicas e provocar distúrbios de sono, quadros de ansiedade depressão.
Esta interação entre a dor, sono, ansiedade e depressão é abordada com profundidade no artigo: Dor, ansiedade e depressão, a tríade do século.
Por todos esses aspectos, a tendência atual é considerar a dor crônica não mais como um sintoma, mas como a própria doença.
“Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais…os animais, como os homens demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.”
Charles Darwin
Prevalência no mundo
A prevalência mundial pode variar dependendo da referência e da metodologia da pesquisa, pois trata-se de uma determinação estatística que depende do universo investigado. Por exemplo, no caso da dor crônica sabemos que é mais prevalente com o avanço da idade do que entre os jovens e é também mais prevalente entre as mulheres, além disso, fatores socioambientais também podem influenciar significativamente, por essas razões os números estatísticos podem variar se a escolha do grupo não levar essas variações em consideração. Assim quanto mais heterogêneas forem as amostras e os dados obtidos, mais variável é a prevalência.
De maneira geral, a dor crônica acomete entre 30 e 50% de pessoas ao redor do mundo. Nos grupos investigados estatisticamente, geralmente as mulheres representam de 52 a 56 %. Se a investigação for realizada em um grupo majoritariamente acima dos 65 anos, este número passará de 50 %, em algumas pesquisas chega a mais de 70%
Pareceu pouco? Então é importante lembrar que este número é cinco vezes maior do que cardíacos e diabéticos juntos. E que a dor crônica é a segunda doença mais prevalente, logo após a hipertensão arterial.
A dor crônica é considerada um problema de saúde pública e um dos mais subestimados, requer intervenções sistemáticas para prevenir, mitigar e tratar seus efeitos devastadores.
E no Brasil, como são os números
No Brasil, não é diferente do que ocorre no mundo, há pouco consenso em relação à carga da dor crônica para o sistema de saúde.
Em uma pesquisa, publicado em 2017, a prevalência de dor crônica no Brasil era 39% com idade média de 41 anos. A predominância entre as mulheres representou 56%. A maior incidência de dor crônica no Brasil concentra-se nas regiões Sudeste e Sul, 84% dos pacientes encontram-se nessas duas regiões.
O dado mais intrigante foi que 49% dos participantes se declararam insatisfeitos com os tratamentos já utilizados. Muitos permanecem com dor por mais de 12 horas por dia. Em um outro estudo conduzido no Brasil em 2018, onde metade dos participantes tinha mais de 65 anos, a prevalência da dor crônica foi de 76%. Ficando em primeiro lugar nesse ranking a dor lombar, seguida por joelhos, mãos e ombros.
Uma luz no fim do túnel…
Apesar das dificuldades enfrentadas pelos pacientes com dor crônica e também pelos profissionais de saúde envolvidos neste processo, uma boa notícia é que muitos profissionais de saúde, médicos, farmacêuticos, nutricionistas, fisioterapeutas tem buscado estudar esta área e se especializar, são especialistas em dor. Isso mesmo, cada vez em maior número, especialistas em dor estudam e se preparam para ajudar seus pacientes a vencer a dor e a carga de complicações físicas e emocionais que estão sempre associadas.
Atualmente, estes profissionais de saúde já sabem, antes de tudo que não é fácil e nem é rápido, porém que é possível lançar mão de muitos recursos, em conjunto, uma forma de terapia que tem sido chamada de multimodal, porque são multidisciplinares, ou seja, vários diferentes profissionais terão olhares diferentes para a questão da dor e juntos podem ajudar muito mais.
A terapia multimodal no manejo da dor crônica, envolve a associação de vários tipos de tratamento. Mas perceba que nem todo tratamento é farmacológico, nem sempre envolve medicamentos.
O primeiro passo é ajustar a vida do paciente, assim simples mesmo, ajustar alimentação, prática de atividade física adequada, ritmo de vida. Estes fatores já são remédio para dor e precisam fazer parte do tratamento.
Além disso, esses profissionais também estão cada vez mais familiarizados com práticas integrativas complementares (PIC). Muitas PICs são eficazes no manejo da dor e contam com comprovação científica de qualidade.
Dentre as mais conhecidas e utilizadas estão: acupuntura, aromaterapia com óleos essenciais, terapia com florais, técnicas de meditação, técnicas de massagem, biodança, pilates, yoga.
Por fim, não menos importante, pois estes quadros não se resolvem sem o uso de farmacoterapia. O conhecimento sobre analgésicos, anestésicos e outros medicamentos efetivos no controle da dor também evoluiu, demonstrando que estes medicamentos são eficazes e seguros se utilizados de forma adequada. Os medicamentos para manejo da dor, associados a PICs e sempre, após ajustar o estilo de vida para o modo “saúde em primeiro lugar”, os resultados são mais rápidos e mais duradouros no controle a dor.
“Comprimidos aliviam a dor, mas só o amor alivia o sofrimento.”
Patch Adams
Nesta coluna, você encontrará periodicamente novos artigos sobre o Manejo da Dor, sempre abordando diferentes aspectos.
Porém, considere sempre que o objetivo é educativo. É uma coluna voltada especialmente para profissionais de saúde interessados no assunto, uma vez que este Blog é voltado para profissionais de saúde, mas também pode ser útil para a educação de pacientes com dor ou de seus cuidadores e familiares. A educação ao paciente com informação adequada e relevante, bem embasada cientificamente, também é um fator importante para o sucesso no controle e manejo da dor crônica.
Reforçando que nenhum artigo substitui o tratamento médico e os cuidados de outros profissionais de saúde e nenhuma informação encontrada aqui deve ser adotada como auto-tratamento ou induzir a auto-medicação sob nenhuma condição.
Referências
Rajaa S.N., Carrb D.B., Cohenc M., et al.; Definição revisada de dor pela Associação Internacional para o Estudo da Dor: conceitos, desafios e compromissos Autores da Força Tarefa da Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP): Tradução para a língua portuguesa da definição revisada de dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor.Disponível online em 13 de julho de 2020.
Azevedo A.C.P., Mendonça L., Dias C.C., et al.; Epidemiology of Chronic Pain: A Population-Based Nationwide Study on Its Prevalence, Characteristics and Associated Disability in Portugal; The Journal of Pain, 2012; Vol 13, No 8: 773-783
Souza, E. G. ,Perissinotti D.M., Oliveira, J.O., et al.; Prevalence of Chronic Pain, Treatments, Perception, and Interference on Life Activities: Brazilian Population-Based Survey; Pain Research and Management, 2004, V 2017, ID 4643830, 9 pages
Carvalho R.C., Maglioni C.B., Machado G.B.,et al. ; Prevalence and characteristics of chronic pain in Brazil: a national internet-based survey study Prevalência e características da dor crônica no Brasil: um estudo nacional baseado em questionário pela internet; Br J Pain., 2018 ;1(4):331-338.